Folha de São Paulo, 18 abril 2023
Por Quê? 20 abril 2023
Em março, Brasil e China anunciaram um acordo para uso de moedas locais em seu comércio bilateral. A China é o maior parceiro comercial do país, sendo destino de mais de 30% das exportações e origem de mais de 20% das importações. Dada a tendência superavitária de fluxos pelo lado brasileiro, presume-se que o Brasil acumulará reservas em renmimbi (RMB ou yuan).
Em dezembro passado, China e Arábia Saudita realizaram sua primeira transação em yuan, seguida de declarações sauditas sobre estarem mirando uma diversificação em relação ao dólar americano. Na cúpula Rússia-China de março, Putin falou que as transações comerciais entre a Rússia e os países da Ásia, África e América Latina seriam feitas em RMB. Acrescentando-se o Irã, outro país às voltas com sanções dos Estados Unidos, logo os “petrodólares” serão substituídos na discussão por “petroyuans”.
Também vale notar a compra pela empresa francesa Total Energies de gás natural liquefeito (GNL), liquidada em yuan, da estatal chinesa CNOOC.
As sanções financeiras sobre a Rússia depois da invasão da Ucrânia já haviam gerado uma expectativa de que o uso armado do acesso a reservas em dólares, euros, libras e ienes suscitaria uma divisão na ordem monetária internacional. A China tenderia a reforçar seu próprio sistema de pagamentos internacionais e a acelerar o estabelecimento da moeda local como moeda de reserva rival, de modo a reduzir sua vulnerabilidade a movimentos de natureza similar contra ela. Países em risco geopolítico em sua relação com os Estados Unidos e a Europa aproveitariam a oportunidade.
A rigor, desde a crise financeira global, a China buscou estender o uso do yuan no comércio internacional e como ativo de reserva em outros bancos centrais. Perseguiu uma proliferação de linhas de swap cambial com bancos centrais de outros países –inclusive o Brasil.
Não espanta, portanto, como “desdolarização” da economia global, “multipolaridade” ou “bipolaridade” monetária internacional viraram palavras da moda nos últimos meses. Contudo cabe entender o real alcance do que está acontecendo.
Antes de tudo, há que se levar em conta a diferença entre o uso de uma moeda para liquidar transações —ou seja, como meio de pagamento– e seu papel como reserva de valor. É claro que, do ponto de vista de um banco central que precise estar pronto para tais pagamentos, o uso em transações leva à constituição de reservas na moeda correspondente
Cabe observar nesse contexto que os volumes de transações cambiais são primordialmente de caráter financeiro, não de comércio de bens e serviços. O tamanho adquirido pelo comércio exterior chinês constituiu uma base gigante para o uso potencial de sua moeda, mas não no lado das transações financeiras.
Em 2015, quando o RMB foi aprovado para fazer parte da cesta especial de moedas de base dos Direitos Especiais de Saque (DES, a moeda contábil emitida pelo FMI), em conjunto com dólar, euro, iene e libra, pôde fazê-lo por causa do comércio, não pelos critérios quanto a seu uso em mercados financeiros.
Transações comerciais, bem como reservas de bancos centrais e outros investidores públicos globais, poderão reforçar a posição do renminbi como moeda alternativa ao dólar, euro, iene e libra esterlina. Contudo, o salto qualitativo para a internacionalização da moeda chinesa como moeda reserva só ocorrerá quando a confiança em sua conversibilidade for suficiente para convencer investidores não oficiais (privados) a guardar reservas nela denominadas.
E bancos centrais precisam ter reservas em moedas com as quais possam operar nos vários âmbitos de transação cambial. Não por acaso, as linhas de swap cambial com a China têm sido pouco utilizadas, enquanto aquelas dos países com o Federal Reserve dos Estados Unidos têm sido acionadas em momentos de necessidade de estabilização de fluxos.
O emissor de reservas tem de aceitar que largos montantes de ativos em sua moeda circulem mundo afora e, portanto, que investidores externos tenham algum peso na determinação de taxas de juros de longo prazo e na taxa de câmbio. Ao que tudo indica, as autoridades financeiras chinesas não aparentam estar considerando a abdicação de controles como prioridade no horizonte imediato. Provavelmente buscarão ampliar o uso do renminbi conforme isso possa ser feito sem abdicar de controles e, portanto, sem a ambição de construir algum regime paralelo ou substituto do existente.
A “dominância do dólar” aparece em seu peso nos mercados globais. As parcelas do dólar norte-americano nas faturas de comércio exterior, assim como nas dívidas e nas operações não bancárias internacionais, estão bem acima do que sugeririam os percentuais do país no comércio internacional, na emissão de títulos internacionais e nos empréstimos através das fronteiras.
A dominância do dólar permaneceu apesar da queda da parcela do PIB dos Estados Unidos na economia global. A partir dos anos 1970, sobreviveu ao fim da conversibilidade em ouro e do regime de taxas fixas de câmbio herdados de Bretton Woods. Sua presença nas operações bancárias e não bancárias até cresceu depois da crise financeira global de 2007-08.
Dados do FMI mostram uma redução no grau de sua “dominância”, com uma queda na parcela do dólar nas reservas dos bancos centrais desde a virada do século, de 71% em 1999 para 58,4% ao final de 2022. Não em favor da libra esterlina, do iene japonês ou do euro —apesar do aumento que este último experimentou durante sua primeira década de existência—, mas sim das chamadas “moedas de reserva não tradicionais” (dólar australiano, dólar canadense, franco suíço e outras), além do renminbi, que alcançou 2,69% do total.
Quatro fatores gravitacionais favorecem a continuidade da posição central do dólar em mercados financeiros internacionais, nas faturas e pagamentos comerciais, assim como em reservas cambiais públicas e privadas –chame de “efeitos de rede” ou de complementariedade e sinergia. A expansão relativa das demais moedas depende de quão bem-sucedidas forem na compensação de tais fatores.
Primeiro, a maior base instalada para transações denominadas em dólares lhe favorece. O aumento de liquidez e a redução em custos de transação nos mercados cambiais “não tradicionais” –inclusive por melhoras tecnológicas em plataformas– ajudaram a diminuir essa desvantagem.
Além disso, nenhum outro sistema monetário oferece tantos títulos públicos como o dos Estados Unidos com “grau de investimento”, que servem para bancos centrais acumularem como reservas e investidores privados usarem como “porto seguro”.
Terceiro, vale notar também que as “moedas não tradicionais” se favoreceram de uma busca parcial por retorno na gestão de reservas. Balanços de bancos centrais –de economias avançadas e emergentes– assumiram grandes proporções nos tempos recentes. Agora, alguns deles separam o que seria a fatia adequada para “gestão de liquidez” (a razão de existirem as reservas em ativos líquidos e de baixo risco, com finalidade de estabilização), de outra “de investimentos” (passível de ser alocada em ativos menos líquidos, porém mais rentáveis). A busca de diversificação ajudou as reservas “não tradicionais”.
O quarto fator gravitacional em favor do dólar seria a ausência de regulações restringindo a liquidez e a disponibilidade de ativos, inclusive controles de capital. Apesar das sanções já aplicadas em casos como os do Irã, Venezuela e Rússia, bem como outras restrições ao investimento externo, reside aqui, como observamos anteriormente, uma dificuldade para os títulos chineses em comparação a aqueles em dólar e às outras três grandes moedas.
Visivelmente, há em curso uma “desdolarização” global, porém lenta e relativamente limitada.
Otaviano Canuto – membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não residente do Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp
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Excelente artigo, Otaviano, muito esclarecedor! Muito obrigada!
Obrigado, Viviane
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