24 Fevereiro 2022 – OTAVIANO CANUTO, JUSTIN YIFU LIN, PEPE ZHANG
WASHINGTON (D.C.) – Episódios de escassez de suprimentos causados pela pandemia estão aumentando os temores sobre a segurança nacional nas economias desenvolvidas. Preocupadas com a dependência excessiva da manufatura chinesa, Estados Unidos, União Europeia e Japão propuseram iniciativas para realocar a produção. E não estão sozinhos. A geopolitização do nexo comércio-indústria-segurança vem ganhando corpo também no mundo em desenvolvimento. Dos Balcãs Ocidentais à América Latina, os governos veem uma enorme oportunidade econômica pós-covid de reshoring e nearshoring(relocalizar e avizinhar, em tradução livre do inglês) a produção.
Reconfigurar as cadeias de abastecimento está se revelando mais complexo do que se imaginava inicialmente. Desfazer três décadas de padrões internacionais de produção – que têm beneficiado a Ásia, em particular – vai exigir mais do que geografia favorável, corte de custos parcial ou incentivos políticos e econômicos pontuais.
Para começar, os governos que querem relocalizar e avizinhar a produção devem voltar algumas casas. Sem melhoras sustentáveis nos fundamentos internos – como estabilidade macroeconômica, certeza e simplicidade regulatória e legal, infraestrutura física, educação e capacitação, produtividade e inovação, além de promoção e facilitação das exportações -, o interesse dos investidores será modesto e de vida curta. Instituições públicas e políticas econômicas eficientes são vitais para proteger esses fundamentos.
Segundo, governos devem ser realistas e precisos ao escolher “vencedores”, baseando-se em avaliações cuidadosas das vantagens comparativas existentes ou latentes. Apoiar empresas inviáveis de modo imprudente arrisca distorcer a competição interna e internacional, além de desencorajar investidores do setor privado. Também é um custo significativo de oportunidade, levando-se em conta as limitações orçamentárias atuais, em particular nos muitos países de baixa e média renda (LMICs, na sigla em inglês). É mais provável que um foco superdimensionado em uma industrialização de substituição de importações – como foi na América Latina no terceiro quarto do século 20 – resulte em alocação insuficiente de recursos do que em sucesso no longo prazo.
Terceiro, a integração regional continua a ser uma ferramenta poderosa para revigorar o comércio e a competitividade, a abertura e a definição de padrões econômicos de modo mais amplo. Pegue-se o exemplo da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) liderada pela Asean (Association of Southeast Asian Nations, a Associação dos Países do Sudeste Asiático), que passou a vigorar neste ano. Não só a RCEP é hoje o maior bloco comercial do mundo, abrangendo cerca de um terço do PIB mundial; ela também representa um marco importante no sentido de harmonizar a “sopa de letrinhas” de acordos de livre comércio na Ásia.
De modo semelhante, ao reduzir barreiras tarifárias e não-tarifárias, além de permitir outras reformas de políticas complementares, a Área de Livre Comércio Africana Continental (afCFTA, no original em inglês) poderia tirar 30 milhões de africanos da pobreza extrema até 2035. Globalmente, a demanda por integração e coordenação econômica mais estreita além da questão comercial – por meio de “acordos de comércio profundo” que harmonizem proteção a investimentos, critérios trabalhistas e ambientais, sem esquecer de direitos de propriedade, além de por meio de iniciativas como o imposto de renda mínima corporativo mundial do G7 – vai continuar a subir.
Quarto, além de aprender com lições valiosas da “velha” cartilha de política industrial, os governos deveriam prestar muita atenção às novas oportunidades e desafios. Por exemplo, enquanto a digitalização do comércio transfronteiriço (especificamente de software e processos de negócios) vem diminuindo as barreiras de entrada e reduzindo os custos de se ganhar escala para setores inteiros de exportação, uma consciência ambiental maior e novos critérios de compliance (como o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira da UE) vão forçar fabricantes a se tornar sustentavelmente competitivos.
Por fim, e em nota relacionada, uma política econômica que olhe para o futuro exigirá responder algumas perguntas difíceis que vão além da política e geopolítica. No curto e médio prazo, será que relocalizar ou avizinhar é mesmo a grande oportunidade que alguns especialistas afirmam que é, ou os governos deveriam focar em outras prioridades? No longuíssimo prazo, que tipo de industrialização e política comercial será a mais benéfica e resistirá ao teste do futuro?
Para as políticas desenvolvidas, um grande desafio está em superar o que Adam Posen chama de nostalgia ou fetichização de empregos na indústria”. Os empregos de fábrica tradicionais são politicamente importantes, mas é improvável que a participação deles no emprego geral dos países de alta renda cresça. É necessário, portanto, reciclar e capacitar para compensar os eventuais ajustes do mercado de trabalho. Setores de alta sensibilidade, como os de semicondutores e produtos farmacêuticos, podem estar entre os poucos que podem se beneficiar de modo significativo da relocalização – um processo que envolve muitos trade-offs caso a caso entre custo e resiliência.
Quanto aos LMICs, as vantagens de mão de obra, infraestrutura melhorada e encolhimento das cadeias globais de valor devem gerar oportunidades com o tempo, em particular à medida que a China muda rumo a uma produção mais sofisticada e de maior valor agregado. No entanto, até que ponto os LMICs conseguem transformar essas oportunidades em investimentos e ganhos de exportação reais vai depender de acertar nos fundamentos. Podem existir variações consideráveis entre países, regiões e etapas de desenvolvimento. A robótica e a automatização também podem representar um desafio ao levarem alguns processos de produção de volta aos países desenvolvidos.
Outra questão fundamental para os LMICs é se o modelo de crescimento baseado em manufatura, de mão de obra intensiva e liderado por exportações que funcionou para os tigres asiáticos vai continuar eficaz o suficiente pelos próximos 20 anos ou mais daqui em diante. Neste debate acalorado, os céticos argumentam que, à medida que as contribuições do comércio ao crescimento global se tornam estagnadas ou menores, políticas econômicas de crescimento baseado em exportação talvez tenham de ser revistas.
Porém, mesmo os céticos concordariam com três avaliações subjacentes: é improvável que uma mudança no varejo ocorra da noite para o dia; atualização industrial e crescimento da produtividade – em bens ou serviços – continuarão essenciais; e até mesmo para os fabricantes que atendem com exclusividade um mercado doméstico (ou que dificilmente se tornarão exportadores), ligações produtivas com fornecedores na parte inferior da cadeia de abastecimento, ou parceiros na parte superior, não vão desaparecer de todo.
Olhando adiante, essas considerações, e não a geopolitização das cadeias de fornecimento, devem moldar os interesses e prioridades dos governos na política industrial. Em um contexto contraditório de posições fiscais piorando e de subsídios em alta ao redor do mundo, a elaboração de políticas de modo atento e com objetivos precisos, além do apoio baseado em desempenho, são mais necessários do que nunca, em especial para ajudar os LMICs a se firmar.
Esperanças de relocalizar e avizinhar – assim como uma revitalização mais ampla das indústrias ou exportações nacionais – são mais viáveis nos países comprometidos com os fundamentos, e menos naqueles que usam reformas de suas cadeias de suprimento como argumentos políticos. Não há atalhos para o desenvolvimento econômico.
Tradução por Fabrício Calado Moreira
Otaviano Canuto
Otaviano Canuto, a former vice president and executive director of the World Bank and executive director of the International Monetary Fund, is a nonresident senior fellow at the Brookings Institution and a senior fellow at the Policy Center for the New South.
Justin Yifu Lin
Justin Yifu Lin, a former chief economist at the World Bank, is Dean of the Institute of New Structural Economics and Dean of the Institute of South-South Cooperation and Development.
Pepe Zhang
Pepe Zhang, an associate director and fellow at the Atlantic Council’s Adrienne Arsht Latin America Center, is co-author of LAC 2025: Three Post-COVID Scenarios (Atlantic Council, 2021).