Para onde vão as taxas naturais de juros
Folha de São Paulo, Por Quê? 20 junho 2023
Por Quê? 22 junho 2023
A “tempestade perfeita” que desabou sobre a economia global a partir de 2020 – a combinação de pandemia, invasão da Ucrânia, fenômenos climáticos adversos mais intensos e frequentes –, acompanhada de políticas fiscais e monetárias contracíclicas agressivas como resposta, trouxe mudanças duráveis no regime macroeconômico das economias avançadas. Nos doze anos que se seguiram à crise financeira global de 2008-09, baixas taxas de inflação e de juros predominaram, bem como a abundância de liquidez fornecida pelos bancos centrais. A partir de 2021, assistimos à forte subida nas taxas de inflação, que exibiram alguma resistência para baixo apesar da significativa elevação nas taxas de juros e do início de políticas de redução de balanços de bancos centrais (o “aperto quantitativo”) desde o ano passado.
Abre-se a pergunta: quão durável será essa mudança de regime macroeconômico? Passado o momento de aperto monetário e consequente estabilização inflacionária em patamares mais baixos, em dois anos ou mais voltarão as taxas de juros nas economias avançadas a níveis tão baixos quanto os das últimas décadas? Ou algo fundamental mudou, aumentando a frequência de choques de preços e a necessidade de juros mais altos?
Para os economistas, essa pergunta equivale a: “para onde vão as taxas ‘naturais’ de juros?”. A taxa “natural” de juros em uma economia é aquela com a qual, nas condições vigentes, não há pressões inflacionárias nem deflacionárias, ou seja, a inflação é estável e o produto da economia corresponde a seu potencial. É a taxa na qual a demanda agregada é igual à oferta agregada, o que equivale a dizer, a poupança iguala a demanda por investimentos.
Não se trata de algo diretamente observável e o máximo que se almeja é estimá-la como uma variável latente, a partir dos dados e modelos com hipóteses. É também algo que se usa como uma referência de médio e longo prazos, ou seja, para além de flutuações cíclicas da economia.
A taxa natural de juros, em termos reais, constitui uma espécie de âncora de referência para a política monetária. Com efeito, quando somada à taxa que corresponde à meta de inflação perseguida pelo Banco Central, tem-se uma taxa nominal de juros em que o Banco Central estaria contente com a taxa de inflação e não estaria propulsando ou desacelerando a atividade econômica para além ou abaixo de seu ritmo potencial.
Essa taxa natural de juros refletiria fatores estruturais que comandam oferta e demanda agregadas. A taxa natural muda ao longo do tempo conforme evoluam esses fatores estruturais que operam como uma âncora gravitacional.
Pois bem. Por que as taxas naturais de juros declinaram sustentadamente nas últimas décadas nas economias desenvolvidas? Que fatores estruturais no lado real da economia as conduziram nessa direção? Quatro são frequentemente apontados – três no lado da poupança e outro do lado do investimento.
Primeiro, demografia e envelhecimento da população. Dada a evolução das pirâmides etárias, grandes parcelas das populações de economias avançadas passaram pela fase intensiva em poupar de suas vidas. Isso elevou a poupança global e rebaixou taxas de juro reais. Além disso, o aumento da expectativa de vida levou essas pessoas a poupar ainda mais para aposentadorias mais longas.
O aumento da desigualdade de renda e riqueza foi outro fator estrutural, já que a detenção maior de recursos por famílias mais ricas tendeu a aumentar volumes de poupança, pressionando taxas de juros para baixo. Um terceiro fator estrutural foi a ascensão de economias não avançadas – especialmente a China – com elevadas taxas de poupança e interessadas em guardar parte de suas reservas – oficiais ou privadas – de riqueza em ativos considerados mais seguros, em economias avançadas.
Um quarto fator vem do lado dos investimentos. Uma tendência surpreendente nos anos que antecederam a “tempestade perfeita” foi a permanência de baixos níveis de investimento nas economias avançadas, apesar da grande queda nas taxas de juros reais. Hipóteses sobre isso estão em geral associadas à evolução tecnológica: as novas frentes de avanço até aqui não têm impulsionado produtividade e/ou acumulação de ativos físicos como as anteriores.
O descompasso entre a demanda por ativos pelas poupanças crescentes e a baixa incorporação de novos ativos reais ensejou inclusive forte procura por – e valorização – de ativos já existentes, suscitando o que chamamos de uma “macroeconomia liderada por bolhas de ativos”.
Levando em conta aqueles fatores estruturais, entre outros, não surpreende, pois, que o Fundo Monetário Internacional (FMI), no segundo capítulo de seu relatório sobre a “Perspectiva Econômica Mundial” de abril, tenha concluído que as forças de longo prazo apontam para o retorno das taxas naturais de juros nas economias avançadas a patamares baixos. Após, claro, a inflação ser trazida de volta nos próximos anos, ao longo dos quais taxas de juros mais altas estarão presentes. Supondo também que as expectativas de inflação dos agentes econômicos não abandonem suas âncoras em níveis mais baixos.
A mudança atual de regime macroeconômico no que diz respeito a taxas de inflação e de juros seria então temporária. O relatório do FMI alude à possibilidade até de retorno de políticas monetárias “não convencionais”, como as adotadas quando as taxas de juros se moveram tendencialmente a patamares negativos em termos reais.
Há fatores frequentemente sugeridos como apontando na direção oposta, no que diz respeito à inflação ou, no mínimo, choques recorrentes de preços. A transição energética tenderá a trazer choques de preços.
A “desglobalização” parcial também trará ineficiência e choques de custos, ao passo que a globalização ajudou a manter baixa a inflação nas economias avançadas nas décadas passadas. Há, por outro lado, boas razões para crer que tais choques – para cima e para baixo – nunca foram significativos o suficiente para ditar a evolução de taxas de inflação e de juros.
Portanto, cabe esperar um retorno ao normal de juros mais baixos nas economias avançadas. Segundo o relatório do FMI, embora o conjunto de economias emergentes e em desenvolvimento não tenha acompanhado as avançadas na baixa de taxas naturais de juros no período anterior à “tempestade perfeita”, suas tendências demográficas e de produtividade e tecnologia também apontariam nessa direção descendente no futuro.
Para onde vai a Selic
Poder360, 01 de julho de 2023
A semana foi intensa em matéria de política monetária. Depois da divulgação, na terça-feira (27 de junho), da ata da última reunião do Copom ocorrida em 20-21 de junho, na qual o Banco Central do Brasil manteve a taxa básica Selic em 13,25%, tivemos a apresentação do Relatório Trimestral de Inflação do 2º trimestre de 2023 na quinta-feira. Também na quinta-feira, o Conselho Monetário Nacional (CMN) decidiu mudar o sistema de metas de inflação a ser seguido a partir de 2025, com um alvo contínuo de 3% a partir daí, ao invés de metas para cada ano-calendário.
A ata do Copom sinalizou um possível afrouxamento da Selic já em agosto, com parte do comitê se sentindo à vontade de indicar tal passo com maior clareza. O mercado está majoritariamente apostando em um primeiro corte de juros de 0,25% em agosto.
O Relatório Trimestral de Inflação (RTI) trouxe projeções macroeconômicas que podem ser vistas como corroborando a leitura de um início do ciclo de afrouxamento em agosto. Destacou a surpresa para baixo de 24 pontos básicos do IPCA no trimestre encerrado em maio, depois daquela de 42 pontos básicos no trimestre até fevereiro.
Além disso, o RTI indicou uma revisão da projeção de junho, agora de -0,08% no lugar de 0,29% do relatório anterior. Com isso, a projeção do relatório para a inflação acumulada no trimestre a ser completado em agosto ficou em 0,46%.
Para inferir onde tende a ir a taxa básica de juros (Selic), é fundamental olhar as projeções macroeconômicas apresentadas como cenário de referência no RTI. Esse cenário supõe uma evolução da Selic de acordo com as expectativas de mercado capturadas na pesquisa semanal Focus, coletada pelo Banco Central, bem como uma trajetória para os preços do petróleo segundo a curva futura destes para os próximos seis meses, assim como a taxa de câmbio seguindo a paridade do poder de compra.
As projeções de inflação do IPCA recuaram para 2023, 2024 e 2025, em comparação com o RTI anterior. As estimativas atuais apontam para 5% ao final deste ano, ainda acima portanto da meta de 3,5% vigente em 2023, mas com 3,4% em 2024 e 3,1% em 2025 já chegando à meta contínua de 3% ao ano.
Como razões para tais revisões para baixo, o relatório destaca a valorização cambial, as recentes surpresas para baixo na inflação, a queda do preço do petróleo, a adoção da bandeira “verde” no lugar da “amarela” para o preço da energia elétrica e a queda nas expectativas de inflação. Na direção oposta, indicam a trajetória de queda da taxa Selic apontada no relatório de expectativas Focus, indicadores de atividade econômica mais fortes do que o esperado e um aumento na “taxa de juros real neutra” – veja abaixo – em comparação com o RTI anterior.
Vejamos então o que o RTI diz a respeito do “hiato do produto” e da estimativa da “taxa neutra” de juros, os quais, em conjunto com as expectativas de inflação pelo mercado, indicam para onde o Copom tende a mover a Selic.
O “hiato do produto” corresponde à diferença entre o PIB observado de uma economia e a estimativa de seu produto potencial. Um hiato do produto é positivo (negativo) quando o PIB estiver acima (abaixo) de seu nível potencial.
A restrição da capacidade produtiva tende a apertar quando o hiato está positivo, com a taxa de desemprego abaixo de sua taxa “normal”, colocando-se uma tendência de aumento da inflação. Simetricamente, se o hiato do produto é negativo, ou seja, o PIB é inferior a seu potencial, existe capacidade não utilizada, o desemprego tende a estar em patamares acima da taxa natural de desemprego e as pressões inflacionárias tendem para baixo.
As taxas básicas de juros estabelecidas por bancos centrais precisam subir (descer) quando o “hiato do produto” está positivo (negativo), de modo a colocar a demanda agregada em nível compatível com o potencial de PIB na economia. A “taxa real neutra de juros” é aquela em que isso acontece, ou seja, não há desigualdades entre PIB real e potencial e, portanto, não há pressão para cima ou para baixo na taxa de inflação vigente
“Taxas neutras de juros” não são algo diretamente observável e o máximo que se almeja é estimá-la como uma variável latente, a partir dos dados e modelos com hipóteses. Elas refletem fatores estruturais que comandam oferta e demanda.
O RTI trouxe uma revisão para cima do crescimento do PIB de 2023 para 2,0%, depois da surpresa com o desempenho no 1º trimestre, ao invés de 1,2% de anteriormente. Diante disso, e da revisão das projeções de curto prazo, a estimativa do “hiato do produto” tornou-se mais fechada, embora com o hiato projetado para o último trimestre de 2023 continuando mais aberto que o nível estimado para o trimestre em curso.
Apesar da surpresa positiva e da revisão da cifra anual do PIB, as projeções embutiram uma desaceleração tanto dos componentes da demanda doméstica como dos componentes mais cíclicos da oferta. Segundo o BC, apesar do aumento da projeção do estoque de crédito para 2023 e da alta na estimativa anual do PIB, a projeção continua refletindo um cenário prospectivo de desaceleração ao longo de 2023, por conta de impactos da diminuição no ritmo de crescimento da economia global e dos impactos cumulativos da política monetária doméstica. Na margem, o “hiato de produto” aponta na direção de queda da Selic.
Cabe também observar se as expectativas acerca de períodos mais longos mudarão de âncora depois do anúncio da reunião do CMN na quinta-feira. Caso se movam para baixo, o ciclo da taxa Selic poderia até ser mais veloz, especialmente se vier acompanhado de desaceleração da economia e queda adicional nas medidas de núcleo da inflação.
O RTI trouxe também uma reavaliação para cima na “taxa real neutra de juros”, mudando sua estimativa de 4% para 4,5% anuais. O exercício de projeção de inflação no relatório já incorporou a revisão da trajetória do hiato do produto, uma taxa de juros neutra mais elevada e a ocorrência de fenômenos climáticos derivados do “El Niño”, dentre outras hipóteses. Levando-se em conta tal exercício, o hiato do produto, a desaceleração inflacionária em curso, as atuais expectativas de inflação e a distância entre a Selic atual e a taxa neutra de juros, pode-se esperar um ciclo de queda de Selic se iniciando em agosto. Caso se mantenham estáveis os parâmetros estruturais de demanda e oferta da economia brasileira, a Selic nominal deverá estar algo em torno de 7,5% ao ano em fins de 2025, ou seja, a soma da taxa real neutra de 4,5% e da meta de 3% de inflação.
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Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University.