Poder 360, 4 de novembro de 2023
A oferta e os preços de energia são o principal canal de transmissão econômica da guerra, escreve Otaviano Canuto
Começo esse artigo falando de uma experiência pessoal. Em 2017, em meus tempos de Banco Mundial, participei de missão de trabalho na Faixa de Gaza, Jerusalém e Cisjordânia. Um dos motivos foi um projeto de saneamento para uma área residencial em Gaza frequentemente inundada de fezes durante períodos de chuva, projeto suspenso por causa da interdição de entrada de tubos sanitários por parte de autoridades militares israelenses.
O oficial israelense nos disse que a interdição se devia ao potencial uso duplo daqueles tubos, para fins civis ou militares. Lembrei-me disso ao ver, nas últimas semanas, vídeos de Hamas desenterrando tubos.
Quando cheguei em casa, em Washington, depois da missão, contei a minha esposa meu temor de algum tipo de explosão ser iminente, inclusive com algum tipo de “suicídio coletivo” ou imposto pelos dirigentes da Faixa de Gaza. Essa impressão me veio pelo que vi em Gaza e ao conversar com colegas do Banco Mundial locados na região, palestinos, funcionários da ONU e o militar israelense.
Vejo o ataque homicida terrorista de Hamas a Israel em 7 de outubro, com sequestro de israelenses, como algo nessa direção. Além de incendiar a região e obstaculizar os encaminhamentos de pacificação entre Israel e Arábia Saudita, certamente contavam com a resposta que se seguiu. Com consequências para a reputação global de Israel e as perspectivas de paz, ainda que ao custo de fazer da população de Gaza um mártir numa “causa maior”. Infelizmente, Hamas está obtendo o que queria.
A extensão da guerra em termos de vidas humanas perdidas, assim como suas consequências no equilíbrio de poder na região e, talvez, na paz global, está em aberto. Assim como suas implicações para a economia global, atingida nos últimos anos pela “tempestade perfeita” da combinação de uma pandemia, o choque inflacionário que a sucedeu, a invasão da Ucrânia pela Rússia, manifestações mais frequentes e intensas do aquecimento global e, agora, a nova guerra. Quão grande será então o choque dessa última?
Conforme reportado aqui no Poder 360, nessa semana o Banco Mundial apresentou seu relatório semestral sobre commodities já trazendo uma avaliação preliminar de impactos da guerra, tendo a oferta e os preços de energia como seu principal canal de transmissão econômica. Como bem observado por Martin Wolf em artigo no Financial Times de terça-feira, 31 de outubro, a região da guerra é a maior produtora de energia do mundo, contendo 48% das reservas conhecidas de petróleo e, no ano passado, foi a origem de 33% do petróleo mundialmente consumido. Há também o fato de que um quinto do abastecimento mundial de petróleo passou pelo Estreito de Ormuz em 2018. Este é o principal ponto de estrangulamento potencial no abastecimento energético global.
Os efeitos do conflito nos mercados globais de matérias-primas têm sido limitados até agora. Os preços globais do petróleo aumentaram cerca de 6% desde o início do conflito, enquanto os preços das matérias-primas agrícolas, da maior parte dos metais e de outras matérias-primas praticamente não se alteraram.
A projeção contida no cenário básico do Banco diz que os preços do petróleo deveriam atingir uma média de 90 dólares por barril no atual trimestre, deslizando para uma média de 81 dólares por barril no próximo ano, dado o decréscimo no econômico global previsto tanto pela instituição quanto pelo FMI. Os preços globais das matérias-primas deveriam cair 4,1% no próximo ano, com preços agrícolas declinando por conta das projeções de sua oferta. Os preços dos metais básicos também foram projetados em queda de 5% em 2024. Uma estabilidade nos preços das matérias-primas está prevista para 2025.
É claro que esse cenário básico dá lugar a mudanças acentuadas caso o conflito se agrave e se alastre. O relatório estabelece três cenários de risco, tendo com base a experiência histórica desde a década de 1970. Os efeitos dependeriam do grau de perturbação no fornecimento de petróleo.
- Num cenário de “pequena perturbação”, o fornecimento global de petróleo seria reduzido em 500.000 a 2 milhões de barris por dia – aproximadamente o equivalente à redução observada durante a guerra civil na Líbia em 2011. Neste cenário, o preço do petróleo aumentaria inicialmente entre 3% e 13% em relação à média do trimestre atual para uma faixa de US$ 93 a US$ 102 por barril.
- Num cenário de “perturbação média” – aproximadamente equivalente à guerra do Iraque em 2003 – o fornecimento global de petróleo seria reduzido em algo entre 3 e 5 milhões de barris por dia. Isso faria com que os preços do petróleo subissem inicialmente entre 21% e 35% – para níveis entre 109 e 121 dólares por barril.
- Por seu turno, num cenário de “grande perturbação” – comparável ao embargo petrolífero árabe em 1973 – o fornecimento global de petróleo diminuiria entre 6 milhões e 8 milhões de barris por dia. Isso faria com que os preços subissem inicialmente entre 56% e 75%, para patamares entre 140 e 157 dólares por barril.
Preços mais altos de energia implicam também preços mais altos de alimentos. No final de 2022, segundo o relatório, mais de 700 milhões de pessoas estavam subnutridas. Uma escalada do conflito intensificaria a insegurança alimentar, não só na região, mas no mundo afora.
O relatório destaca alguns aspectos da evolução no uso do petróleo que poderão fazer diferença em termos de capacidade de absorção dos choques de preços pela economia global. Desde a crise energética da década de 1970, países de todo o mundo reforçaram suas defesas a tais choques. Caiu a dependência do petróleo: a quantidade de petróleo necessária para gerar 1 dólar do PIB caiu mais da metade desde 1970.
Há também uma base mais diversificada de exportadores de petróleo e recursos energéticos, incluindo as fontes renováveis. Alguns países estabeleceram reservas estratégicas de petróleo, estabeleceram mecanismos para a coordenação da oferta e desenvolveram mercados de futuros para mitigar o impacto da escassez de petróleo nos preços.
Estas mudanças sugerem que uma escalada do conflito poderá ter efeitos mais moderados do que teria acontecido no passado. Contudo, além do efeito devastador sobre vidas trazido por uma extensão e agravamento da guerra, não é o caso de se menosprezar os efeitos sobre pobres e a segurança alimentar e energética.
Gideon Rachman, também no Financial Times nessa semana (30 de outubro), relembrou como a primeira guerra mundial acabou sendo disparada por um evento, apesar de visíveis tentativas prévias de acalmar ânimos por muitas partes. Ajudaria muito se algum plano crível de pacificação, com um mínimo de acomodação de desejos das partes beligerantes, já estivesse sendo esboçado e explicitado.
Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.