Poder 360, 5 agosto 2023
Uma fragmentação geoeconômica global traria danos particularmente para economias emergentes e em desenvolvimento
No fim de semana passado fiz uma apresentação num simpósio em New Delhi, sobre a agenda global de crescimento verde e sustentável, organizado como parte das atividades do G20 sob a presidência da Índia este ano. Coube-me abordar as consequências das fraturas no comércio global, em escala crescente desde a pandemia, a invasão da Ucrânia pela Rússia e o acirramento da rivalidade geopolítica entre Estados Unidos e China.
Com efeito, a frequência e a abrangência de medidas comerciais e políticas industriais discriminando agentes externos, particularmente nas economias avançadas, aumentaram no passado recente. Tem-se assistido a uma variedade de políticas públicas nessa direção, como a imposição de tarifas, o endurecimento de regras para investimentos estrangeiros e a renegociação de acordos comerciais para incluir termos mais restritivos.
Tanto que se fala de uma tendência à “fragmentação geoeconômica global”, entendendo-se esta como uma reversão ou reconfiguração da integração via cadeias globais ou regionais que esteve subjacente ao extraordinário aumento do comércio exterior em relação ao PIB dos países a partir dos anos 90. Um processo que permitiu inclusive a saída de quase um bilhão de pessoas da situação de pobreza no mundo.
Pode-se localizar quatro tipos de justificativas aludidas para a adoção daquelas medidas comerciais. Começando por razões de natureza “social”. Após a crise financeira global de 2008, cresceu entre habitantes de regiões avançadas a crença de que a globalização e a transferência de empregos industriais para a Ásia – ou a imigração em alguns casos – seriam responsáveis pelas dificuldades de progresso enfrentadas por suas classes de renda média e baixa. Isso culminou em vitórias eleitorais ou aumento do eleitorado para líderes populistas que se aproveitaram desse sentimento, prometendo a reversão do que ocorreu nas décadas anteriores via proteção comercial e políticas industriais.
Uma segunda fonte de justificativas tem sido uma suposta busca de “resiliência perante choques”, algo exacerbado pela vulnerabilidade a choques atribuída à globalização durante a pandemia, quando ocorreram severas rupturas nas cadeias produtivas globais.
“Segurança nacional” tem sido também uma fonte de justificativas mais frequentemente usada. A invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe os “riscos geopolíticos” para o centro da mesa, mas na verdade a rivalidade entre os Estados Unidos e a China já havia gerado narrativas sobre a reversão da globalização nos anos 2010s.
Finalmente, a agenda de descarbonização contra a “mudança climática” também gerou argumentos para a adoção de medidas discricionárias sobre agentes externos. Tal luta seria onerosa e medidas compensatórias ou defensivas para os locais seriam justificáveis ou necessárias.
Existem, porém, a nosso juízo, algumas razões para acreditar que a “fragmentação comercial” será limitada ou relativa. Antes de tudo, cabe lembrar que a configuração de cadeias globais ou regionais não é fortuita, tendo surgido por razões de eficiência de custos. Abandonar tal configuração implica em custos, para as cadeias de valor e seus usuários.
Tome-se o caso da resiliência a choques. Em muitos setores, as empresas podem optar por arcar com tais custos, acumulando estoques em pontos das cadeias e/ou duplicando trechos dessas cadeias em diferentes pontos geográficos. Mas os incentivos microeconômicos enfrentados pelas empresas estabelecem limites de custo-benefício a tal cálculo de renúncia à eficiência para aumento da resiliência a choques. Há que se considerar também que, sem a existência das cadeias no exterior, os efeitos de choques locais também seriam maximizados. Aliás, conforme mostrado em trabalho feito por mim e colegas para o grupo de think tanks que acompanha o G20, o comércio internacional não comprometeu a recuperação econômica após a pandemia.
E quanto a políticas públicas desenhadas para afetar aqueles cálculos privados em favor do que desejam os formuladores das chamadas “políticas industriais”? Inclusive para promover a “reindustrialização” e o emprego manufatureiro prometidos como justificativas “sociais”? Vale observar nesse caso como as políticas tarifárias comerciais adotadas pelo presidente Trump contra a China provaram ser um fardo para o emprego na própria indústria manufatureira dos Estados Unidos, conforme já abordamos aqui.
Razões de “segurança nacional” talvez sejam aquelas de maior alcance e influência. Riscos geopolíticos e a rivalidade geoeconômica já se fazem presentes na implementação de “políticas industriais” em segmentos como semicondutores avançados, equipamentos médicos e militares, privacidade de dados e afins. O acesso a minerais críticos para o uso dessas tecnologias e para a transição energética também crescerá como objeto de geopolítica.
A reversão da globalização não será buscada, porém, no caso do comércio exterior dos demais itens. Haverá ônus para aqueles que optem por uma demarcação exagerada do que deve ser considerado “estratégico”.
A propósito, cabe notar que a transformação digital acelerada vem ampliando o escopo para uma possível globalização de serviços. O aumento da atividade transfronteiriça digital também sugere que a natureza e o escopo da globalização devem evoluir nos próximos anos, pois os fluxos podem continuar diminuindo em áreas tangíveis, como o comércio de bens, enquanto aceleram nas áreas intangíveis, incluindo comércio de serviços e fluxos de dados transfronteiriços.
Do lado chinês, pode-se supor uma preferência por não derramar o caldo da globalização que facilitou seu sucesso no crescimento-com-transformação-estrutural, ainda que tenha sentido os novos rumos na área geopolítica e dado sinais de busca de menor dependência do exterior.
Pode-se certamente esperar uma globalização mais lenta e alguma regionalização. Pode-se esperar uma desaceleração do crescimento dos fluxos transfronteiriços de bens, capital e pessoas, algo já presente desde a crise financeira global, em vez de “desglobalização”, entendida esta como declínio absoluto e/ou fragmentação.
Políticas industriais implicam custos econômicos (fiscais, ineficiência), compensáveis na perspectiva de um país apenas na medida em que, em certo horizonte temporal, os efeitos sejam tais que venham a não apenas torná-las redundantes, como também compensem tais custos. As razões para o desencanto relativo com a globalização não parecem ser suficientes para sua adoção generalizada.
A esse respeito, no evento em New Delhi, apresentei resultados de simulações feitas por analistas de várias instituições multilaterais, todas apontando números negativos para os impactos que as “fraturas” no comércio global trarão sobre os PIBs dos países, especialmente para economias emergentes e em desenvolvimento. O dano cresce mais que proporcionalmente à extensão e a profundidade de tais fraturas.
Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Univerdidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.