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Na avaliação do economista Otaviano Canuto, ex-diretor do Banco Mundial e do conselho do FMI, a liberação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) aos trabalhadores não sustentará a retomada da economia brasileira. Ele observa problemas estruturais mais graves no País como o baixo investimento em infraestrutura e a anêmica produtividade, reflexo da precária qualidade da educação.
Como o senhor avalia a agenda do governo do presidente Jair Bolsonaro?
Se me perguntar se eu acho apropriada a agenda de reformas e direção da política econômica, eu digo que sim. Acho que temos um problema estrutural, que vem de muito tempo, há décadas sugando a nossa economia. Alguns fatores escamotearam e atenuaram as consequências desses problemas. Mas esses fatores atenuantes se esgotaram todos. Um é a combinação do que chamo de anemia da produtividade e da obesidade do setor público. Enquanto a gente ainda tinha o país com população crescendo meio que disfarçou isso, houve crescimento por integração de mão de obra no mercado de trabalho. Mas a curva benéfica de crescimento demográfico já foi embora, em boa parte. Precisamos, mais do que nunca, de aumentar a produtividade.
O baixo investimento em infraestrutura influencia?
A carência de infraestrutura afeta diretamente a produtividade, porque implica em desperdício da produção, no transporte, nas grandes cidades, de produção agrícola que simplesmente se deteriora antes de chegar ao ponto de saída. A falta de investimento em infraestrutura afetou a produtividade. Mas não só isso. Temos um problema crônico de educação. Houve melhora nos indicadores de acesso às populações mais jovens, que, embora já alcançaram um grau de escolaridade bem mais alto do que o dos pais, mas não com qualidade. Nunca tivemos uma transformação educacional da população que assistimos em todo o mundo, que vem de baixo e sobe a níveis adequados.
Os marcos regulatórios estão adequados para ajudar a enfrentar os desafios?
Também temos um ambiente de negócios, uma estrutura legal regulatória, tributária e tudo o mais que jogam contra, que levam a desperdícios, que impõem um ônus pesado sobre a produção. Somos um país fechado a protecionista, não só no comércio exterior, mas em termos de proteção de empresas ineficientes.
Evoluímos pouco em produtividade nas últimas décadas?
Ao longo das três últimas décadas tivemos um ritmo de evolução da produtividade bem anêmica. O outro problema, a obesidade do setor público, que desde do início do anos 1990, na média, o gasto público no Brasil vem crescendo, em termos reais, em média, em torno de 6% ao ano. Ninguém precisa ser matemático para entender essas implicações. Em decorrência disso, por um lado, uma missão de política social, de resgate de pobreza foi incorporada por diversos governos, mas sem mexer em privilégios que já estavam e que lá continuam. A expressão disso é a parcela crescente no gasto público de despesas previstas em lei, ou seja, obrigatórias, que não importa quem estiver sentado lá no Palácio do Planalto, independente do partido, de Lula, Bolsonaro ou FHC, não importa. Tem um conjunto de determinações legais que impõem um crescimento ano após ano, por lei, do gasto público. A previdência é só um caso desses. Hoje, a margem de manobra do gasto discricionário, que cabe ao governo decidir, é cada vez menor. A reforma da Previdência é condição necessária para mudar esse quadro, mas sequer suficiente por si mesma para reverter essa tendência nos próximos anos. A direção da política econômica está correta, mas ao mesmo tempo temos de ser realistas: os resultados dela só vão aparecer gradualmente.
A estagnação da economia atrapalhou o ajuste fiscal?
Se o PIB e a produtividade estivessem crescendo, seria mais fácil absorver o gasto público crescente e, de fato, a crise fiscal não foi aberta no início do novo milênio porque a receita pública tributária no Brasil depende fortemente da tributação sobre o consumo. E lá atrás houve integração de trabalhadores no mercado formal e também um período de aumento de preços de commodities, que gerou renda associada à exportação desses produtos. Tudo isso ajudou a arrecadação tributária. Mas, enquanto o PIB cresceu ao redor de 4,5% ao ano, as despesas do governo como proporção desse PIB subiram além das receitas tributárias. E quando acabaram os fatores que permitiram o crescimento da arrecadação tributária no novo milênio, acaba o ciclo do preço de commodities e crescimento das receitas, aí o rei ficou nu. O problema fiscal aparece, se manifesta. Evidentemente, o governo Dilma Rousseff não ajudou nisso, pelo contrário, tentou sair dessa situação pulando para o futuro, fazendo um esforço de investimento público, supondo que o surto de investimento pudesse colocar a economia brasileira em uma trajetória mais fácil para acomodar tudo isso. O governo emitiu dívida de R$ 400 bilhões para repassar aos bancos públicos sem que isso tivesse se transformado em maior investimento privado. Boa parte das empresas usou recursos do BNDES para reciclar dívidas, não para investimentos.
A tentativa de resolver o problema acabou piorando a situação fiscal?
Sem dúvida. As duas coisas se alimentaram. Se o gasto público migra cada vez mais para despesas obrigatórias, isso não beneficia a base da pirâmide, mas a parte de cima. Faltou dinheiro para a infraestrutura e isso alimentou o problema da anemia da produtividade. As duas faces da doença: anemia e obesidade se alimentaram até aqui. E se jogou para a frente a resolução do problema. Mas depois os preços das commodities lá fora começaram a ficar desfavoráveis, veio o desemprego. Sabendo que o de produtividade não se resolve da noite para o dia, como o fiscal, embora este seja mais urgente por causa da deterioração da trajetória fiscal nos últimos anos, que exige uma resposta mais urgente. Mas isso não é suficiente para garantir um retorno rápido ao crescimento econômico. Mas é o único caminho. A gente tem também outro desafio a superar: o aumento do crédito para o consumo de famílias foi utilizado efusivamente no Brasil, como maneira de sustentar o crescimento no curto prazo, durante boa parte da atual década. E o círculo de endividamento de famílias aconteceu. A festa é boa enquanto dura, mas a ressaca também demora para ir embora.
Como sair dessa situação?
Não tem como fomentar o consumo via endividamento de famílias. Como o grau de profundidade da crise foi elevado também na base da pirâmide, as famílias estão receosas de assumir endividamento . A única maneira de imaginar a volta do crescimento da economia brasileira é acelerar a recuperação. E, não por acaso, a retomada é lenta depois da crise, porque a atividade econômica ficou mais vulnerável a choques, como a greve dos caminhoneiros. O único modo de sair disso, de uma maneira ou de outra, é via investidores privados apostando no futuro. Do lado do setor público, o máximo que poderá fazer é buscar parcerias privadas.
A liberação de recursos do FGTS não ajudará em nada?
Isso terá efeito de fogo fátuo, não sustentará a retomada do crescimento. Embora não vá afetar o ajuste fiscal, terá fôlego limitado. De 2020 a 2021, a economia se encaminha para um patamar mais alto do que o atual, de 0,5% a 1% de crescimento ao ano, para 2% a 3%. Se os investidores privados apostarem no futuro, de fato o país vai poder entrar em outra onda, mas os problemas estruturais precisam estar minimamente resolvidos, com isso a economia vai crescer. Se dinheiro for colocado para projetos de energia, infraestrutura, aí a esperança voltará a crescer. No primeiro semestre, a reforma da Previdência foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, mas tem o segundo turno, depois tem mais dois turnos no Senado, ainda falta definir se estados e municípios vão entrar. Sequer, hoje, temos a certeza se e quanto a reforma da Previdência mudará o panorama no lado fiscal.
Foi acertada a estratégia do governo de apostar todas as fichas na Previdência?
Acredito que foi um erro apostar tudo, no começo, só na reforma da Previdência, deixando o resto para depois. Talvez fosse factível ir encaminhado propostas de reforma tributária desde o começo, de privatização, de venda de ativos do setor público para diminuir a dívida pública. Não sei o que eu e outros poderíamos fazer de diferente. O Brasil precisa construir paredes fiscais. O andar de cima está otimista, ou seja, os investidores da Bolsa e do mercado financeiro, porque o ministro Paulo Guedes, da Economia, propôs uma agenda atacando problemas estruturais. Já no andar de baixo, ou seja, o mercado de trabalho, a renda das família, a coisa continua feia e dolorosa, assim como a ociosidade da indústria. É melhor construir logo as paredes porque o teto vai encontrar o piso, todos se encontrar lá embaixo. Se o hiperentusiasmo dos mercados financeiros foi dando lugar a uma leitura realista, recuando a projeção de crescimento do PIB para este ano, de 2,5% em janeiro para 0,8%, agora, isso evidencia a trajetória difícil. Não tem solução mágica.
E como atacar nossa desvantagem na educação?
Os professores precisam ser capacitados e respeitados, além de remuneração conforme o desempenho dos alunos, como é o modelo bem-sucedido no Ceará. Isso faz uma enorme diferença. Mas o problema não é no gasto, mas na qualidade do gasto. Como proporção do PIB brasileiro, a despesa pública na educação não é baixa, segundo estatísticas internacionais. Mas é um dinheiro extremamente mal gasto. Tem um problema de má alocação do gasto público com educação.