Guerra por procuração nas tecnologias de energia limpa

Poder360 – 2.set.2023

As posições de China e EUA nas tecnologias de energia limpa estão hoje inversas às de semicondutores

Em novembro de 2022, abordei neste espaço a “guerra por procuração” entre EUA e China por meio de semicondutores. Depois do sucesso das exportações chinesas nos segmentos menos tecnologicamente avançados da indústria, os EUA estabeleceram barreiras contra o acesso chinês a equipamentos e tecnologias norte-americanas para a subida na escala tecnológica –exigindo inclusive que usuários em outros países não servissem como meios de driblar a restrição.

A progressão tecnológica na economia chinesa, nas últimas décadas, foi basicamente um processo de uso de conhecimentos e tecnologias tornadas disponíveis pela globalização. Em conjunto com investimentos locais na formação de capacidades, além de transferência forçada em alguns segmentos, firmas chinesas adquiriram, em sequência, competência em produzir, adaptar tecnologias e, em alguns casos, até fazer inovações básicas.

A consequência concreta no caso dos semicondutores avançados é que a China terá de construir ela própria os degraus superiores da escada tecnológica.

Uma situação inversa à de semicondutores hoje é a que aparece no caso das tecnologias de energia limpa. Num discurso em setembro de 2022, Jake Sullivan, assessor de segurança nacional da Casa Branca, mencionou semicondutores avançados e tecnologias de computação, biotecnologia e tecnologia de energia limpa como áreas em que os EUA deveriam manter a liderança global, como “um imperativo de segurança nacional”.

Contudo, diferentemente do caso de semicondutores, em que os EUA e aliados têm a liderança e o atual controle de pontos de estrangulamento nas cadeias de produção, a China construiu uma posição muito forte nas tecnologias de energia limpa.

Um relatório da Gavekal, consultoria com sede em Hong Kong, divulgado na 5ª feira (31.ago.2023), aborda muito bem o tema. Observa que a transição para a energia limpa está exigindo tanto a inovação científica quanto a expansão em grande escala de tecnologias estabelecidas.

Os EUA permanecem excelentes na primeira, incluindo-se aí o trabalho científico na captura e no armazenamento de carbono e na sua remoção. Também estão explorando fronteiras na energia geotérmica, beneficiando-se da experiência em fraturamento hidráulico na indústria de petróleo e gás de xisto. Por outro lado, nas indústrias comerciais que estão na fase de expansão, os EUA estão atrás da China nas tecnologias de descarbonização mais críticas: solar, eólica, baterias e hidrogênio.

A dominância chinesa é patente na energia solar. Veio principalmente de lá o declínio de 90% no custo da geração de energia solar na última década, com empresas chinesas sendo responsáveis por 75-95% de cada componente da cadeia de valor. Tarifas e banimento de importações não impediram que, hoje, as importações de células fotovoltaicas pelos EUA venham majoritariamente de fabricantes chineses localizados no Sudeste da Ásia.

Chineses também estão na dianteira no que diz respeito a baterias de veículos elétricos, ganhando espaço inclusive de firmas rivais do Japão e da Coreia do Sul que estavam na dianteira tecnológica. Nesse caso, a proximidade física a fabricantes de automóveis importa. Produtores chineses se beneficiaram da explosão na produção de carros elétricos na China, cujo consumo local foi subsidiado pelo governo. Os resultados em termos de produtividade e competitividade fizeram a China superar a Alemanha na exportação de automóveis em 2022.

O desafio é mais complexo no caso da energia eólica. A China hoje tem a maioria dentre os 10 maiores produtores de turbinas eólicas no mundo, mas servem principalmente o mercado interno. Turbinas, com torres e lâminas grandes, demandam uma assistência e serviços nos locais de instalação e as firmas chinesas encaram dificuldades nesse caso.

Por último, as empresas chinesas estão assumindo a dianteira na produção de produtos de hidrogênio limpo, fonte de energia que poderá crescer a partir da próxima década. Um problema com o hidrogênio é que é necessária muita energia para ser produzido, quebrando moléculas de água por meio da eletrólise. A queda acentuada do custo das energias solar e eólica poderá eventualmente alterar a relação custo-benefício na produção de hidrogênio limpo em grande escala.

Vale notar que a tecnologia de energia limpa chinesa avançou em parte por conta dos massivos investimentos com sua aplicação. Em 2022, assim como em outros anos da década, os gastos com capacidade de energia renovável na China foram maiores que nos EUA e na Europa juntos.

Pessoalmente, conheço um ótimo exemplo do “aprendizado reverso” via globalização e investimentos de capacitação local. Na Coreia do Sul, mas aplicável no caso chinês. Em 2007, quando era um vice-presidente no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), visitei um então projeto de produção de energia solar. Um engenheiro sul-coreano, depois de anos de trabalho nos EUA, juntou-se a conterrâneos para criar equipamentos e um processo de produção em escala comercial de uma patente obtida da Universidade de Delaware, nos EUA.

Com o passar do tempo, acompanhei o sucesso competitivo do projeto e sua reprodução com aprimoramentos. O nível relativamente inferior de investimentos em energia renovável nos EUA e na Europa, em relação à China, em parte explicam a dianteira desta.

E os EUA? A “Lei de Redução da Inflação” (Inflation Reduction Act), aprovada pelo Congresso em 2022, colocará de US$ 400 bilhões a US$ 1 trilhão em apoio a energia solar, baterias de alta capacidade, equipamentos de produção de hidrogênio e outras formas de energia renovável. Em seu discurso, Jake Sullivan se referiu a essa e outras peças legais do governo Biden como pilares de uma estratégia industrial e de inovação moderna do país.

Caso os EUA busquem alavancar sua tecnologia limpa tentando fazê-lo de modo inteiramente autossuficiente, em parte incluindo países “amigos” e excluindo inteiramente a China, será mais árduo subir a escada de produtividade e competitividade. Se tentarem o caminho simetricamente ao que buscam fazer aos chineses nos semicondutores avançados, no mínimo sua transição energética sairá muito mais cara.

Para finalizar, cabe mencionar um outro ponto: mineração e refino de minerais críticos a montante da cadeia de abastecimento de energias renováveis. As empresas chinesas têm feito aquisições no exterior, comprando grande parte da oferta de cobalto e lítio. Os minerais estão distribuídos no globo, mas a maior parte do refino está na China. Recentes ameaças pela China de restringir exportações de gálio e germânio representam uma escalada na competição global por minerais e metais críticos, ou seja, mais um campo para “guerras por procuração”.

Otaviano Canuto, 67 anos, é membro-sênior do Policy Center for the New South, membro-sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Escreve para o Poder360 mensalmente, com publicação sempre aos sábados.

 

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