Ausência de autoridades demonstra que Fórum de Davos não saiu ileso da retração da globalização nos últimos tempos, escreve Otaviano Canuto.
Poder 360, 21 de janeiro de 2024
Nesta semana ocorreu o Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Há 54 anos uma elite empresarial mundial viaja para lá, seja para interagir com clientes e fornecedores, com lideranças intelectuais em temas abrangentes ou, num ambiente informal, com autoridades governamentais e multilaterais que lá compareçam.
Nada se delibera, claro, mas ao longo do tempo o fórum estabeleceu grande reputação como palco onde anúncios são feitos e um melhor conhecimento cruzado de opiniões de agentes-chave sobre temas quentes pode ser obtido.
Tive pessoalmente a oportunidade de ver isso no fórum em janeiro de 2003, quando fui membro da comitiva governamental brasileira. Naquele momento era enorme e disseminado o interesse em conhecer o que seria o 10 governo Lula. Raras vezes na vida vi um grupo tão grande de economistas mundialmente reconhecidos sentados numa sala para ouvirem os recém-assumidos Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e o Presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, falarem sobre quais seriam suas políticas. Lula também recebeu enorme holofote no evento. O fórum claramente servia para saciar tal tipo de curiosidade.
Xi Jinping, presidente da China, por exemplo, soube usar bem Davos para fazer uma defesa da globalização e do livre comércio em 2017. A China conseguiu galgar a escada da renda per capita usando bem a globalização e, naquele momento, começava a ter que lidar com a atitude antichinesa assumida pelo então governo Trump. Não poderia ter um palco melhor para a emissão de sua mensagem.
Este ano o lema oficial foi a “reconstrução da confiança”. Não por acaso, riscos geopolíticos dominaram as discussões, desde as guerras em Gaza e na Ucrânia, até as possíveis consequências de um retorno de Trump à Casa Branca depois das eleições americanas deste ano. Isso se deu a despeito de alguma espécie de otimismo que poderia ter sido gerado pelas surpresas favoráveis na economia global em 2023, depois das previsões feitas no fórum do ano passado, quando a previsão dominante, depois contrariada, foi a de que a economia global atravessaria forte desaceleração. A necessidade de mais “confiança” e cooperação para minorar riscos globais foi o lema.
Em janeiro de 2003 também havia a sombra da geopolítica. A possibilidade de invasão do Iraque – que veio a ocorrer 2 meses depois do evento – foi objeto de discussões. A memória do 11 de setembro de 2001 também estava fresca o suficiente para aparecer nas discussões. Mas o fato é que a predominância da agenda da globalização econômica foi então cristalina.
Não este ano. O Relatório de Riscos Globais 2024 proposto pelo Fórum destacou 10 principais riscos para os próximos 10 anos. Cinco desses se referem a questões ambientais:
- eventos climáticos extremos;
- mudança crítica nos sistemas terrestres;
- perda de biodiversidade e colapso do ecossistema;
- escassez de recursos naturais; e
- poluição.
Observa como tais riscos ambientais podem ultrapassar pontos sem retorno. Além deles, o relatório destaca a polarização política crescente, riscos tecnológicos com a inteligência artificial evoluindo fora do alcance de controles regulatórios, bem como novos riscos de segurança acompanhando a elevação nas tensões geopolíticas. Pelo menos a julgar pelas sessões abertas que acompanhei, esses temas predominaram.
O Fórum de Davos é uma oportunidade gigante de networking em pessoa. O refluxo durante a era da pandemia não mudou isso. Mas algo parece ter mudado no que diz respeito ao que o cientista político Samuel Huntington descreveu, em 2004, como uma tribo, uma elite global com “pouca necessidade de lealdade nacional, […] vendo as fronteiras nacionais como obstáculos que felizmente estão desaparecendo e os governos nacionais como resíduos do passado”. Os homens – e mulheres – de Davos como “globalistas”!
Tão identificado com a expansão e o fortalecimento da globalização nas décadas em que floresceu, o Fórum de Davos não poderia sair ileso da retração desta nos últimos tempos. Não deixa de ser paradoxal que, para além da menor presença de autoridades públicas globalmente significativas em relação a fóruns anteriores, o evento teve um discurso do novo presidente da Argentina, Javier Milei, em que este avisou os homens e mulheres de Davos sobre os riscos de serem capturados por uma visão de mundo que “conduz ao socialismo e, consequentemente, à pobreza”. Soou como o modo com o qual Steve Bannon (o ideólogo americano de extrema-direita apoiador de Trump) e o finado Olavo de Carvalho sempre se referiram aos “globalistas”, como são as pessoas de Davos.
Otaviano Canuto, 68 anos, foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.
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