Fluxo de capital da China para a América Latina passa por metamorfose

 

Poder360 03ago24

Volumes menores, investimentos diretos e foco em novas tecnologias agora predominam

Em 2019, participei de um documentário produzido pela Associação de Política Externa dos Estados Unidos e veiculado pela rede de TV PBS (Public Broadcasting System) sobre os investimentos chineses na América Latina. Seu título, “Competindo por influência, traduziu bem a preocupação de norte-americanos acerca da presença crescente da China em seu “quintal” por meio de tais investimentos.

Políticos dos 2 grandes partidos e integrantes do então governo Trump falaram de uma possível “armadilha por endividamento” para os países da região, bem como de um descaso chinês quanto a questões de governança e impactos socioambientais. Por seu turno, governantes da América Latina –com os quais concordei– perguntaram qual seria a alternativa e observaram como os chineses estavam preenchendo um vazio deixado pela insuficiência da presença dos Estados Unidos.

Mais recentemente, muito me perguntam sobre a continuidade daquele processo. Respondo que a intensidade e a natureza daqueles fluxos mudaram. Aliás, já em março de 2019 eu tinha sugerido aqui neste Poder360 que havia uma metamorfose nos fluxos de capital da China na região a caminho.

O comércio bilateral entre a China e a América Latina subiu de US$ 18 bilhões em 2002 para US$ 450 bilhões em 2022. A China tornou-se o principal destino das exportações de Brasil, Peru, Chile, Panamá e Uruguai, virando também a principal origem de importações para Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Bolívia, Peru, Equador e Paraguai. Produtos agrícolas, minerais, gás e petróleo da região em troca de manufaturas chinesas.

No lado dos investimentos chineses, a década passada teve o financiamento de grandes projetos de infraestrutura –ferrovias, estradas, barragens, portos, extração de petróleo e oleodutos, energia e telecomunicações– por bancos públicos de desenvolvimento chineses: Eximbank e Banco de Desenvolvimento da China. Em vários anos de 2005 a 2018, os empréstimos da China à América Latina e o Caribe chegaram a ultrapassar a soma dos empréstimos do Banco Mundial, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina) para a região. Algo similar ocorreu na África.

Nem todas as operações fizeram parte formalmente da Nova Rota da Seda (ou Iniciativa Cinturão e Rota) da China, lançada por Xi Jinping em 2013. O Brasil, por exemplo, não faz parte dela oficialmente –embora recentemente Lula tenha manifestado interesse numa adesão formal pelo país. O fato é que a Nova Rota da Seda trouxe um selo para o financiamento e a construção de infraestrutura no exterior pela China em América Latina, África, Ásia e Europa oriental.

A Nova Rota da Seda entrou em nova fase a partir de 2019, fase que pode ser chamada de “correção”. A rigor, a maior parte dos recursos desde 2020 foi para empréstimos emergenciais que evitassem que vários países de renda baixa e média parassem com o serviço da dívida dos projetos anteriores, e não para novos. Como nas demais regiões, os fluxos de financiamento chinês para a América Latina caíram substancialmente.

O total das dívidas para a China de países de renda baixa e renda está hoje em torno de US$ 1,1 trilhão a US$ 1,5 trilhão. Aproximadamente 80% da carteira de empréstimos da China está em países com dificuldades financeiras. Em 2021, dos empréstimos chineses, 58% foram operações de socorro, com menos de um terço para novos projetos de infraestrutura.

Com a entrada de muitos países tomadores de empréstimos em situações de “estresse de dívida”, o banco central da China também abriu linhas emergenciais de crédito. No ano passado, a Argentina escapou de dar um calote no FMI graças à linha de crédito entre seu banco central e o chinês.

Mais da metade dos empréstimos de dentro da Nova Rota da Seda já entrou em seus períodos de reembolso do principal e até 2030 o número deve atingir 75%. Então, os devedores da China estão iniciando grandes reembolsos num momento em que as taxas de juros passaram para um período de alta, o dólar norte-americano valorizou e o crescimento econômico global está arrefecendo. Como bem posto por um recente relatório da AidData, a China está passando de maior credor bilateral de desenvolvimento do mundo para “maior cobrador de dívidas oficiais do mundo”.

A insistência da China em processos bilaterais de reestruturação de dívidas em seus próprios termos (que raramente incluem a amortização do principal), não participando plenamente de processos multilaterais, a resolução da dívida dos países em desenvolvimento às voltas com estresse deve se arrastar por anos.

Contudo, depois das fases de “ápice” (2014-2017) e de “correção” (a partir de 2018), a Nova Rota entrou numa 3ª fase. O foco agora está em projetos “pequenos e mais espertos”, em coordenação com as políticas industriais de energia limpa da China. A “Nova Rota” vai querer ampliar mercados para fabricantes chineses de energia solar e eólica e de veículos elétricos, além de assegurar acesso a minerais críticos para sua cadeia de valor de produção de baterias.

A metamorfose nos fluxos de capital para a América Latina e o Caribe trouxe, além de menor volume, a substituição de bancos de desenvolvimento por investimentos diretos externos de empresas do país. Em grande medida refletindo a própria evolução da economia chinesa, com seu crescimento passando mais recentemente a depender de investimentos em setores de alta tecnologia. Veículos elétricos, painéis solares, baterias elétricas, digitalização, telecomunicações, tecnologia financeira e eletrificação, além de minerais críticos, são os novos destinos setoriais do investimento chinês na região.

Dado o contexto de rivalidade tecnológica –inclusive na energia limpa e no acesso a minerais críticos– entre China e os EUA e seus aliados, uma sequência do documentário de 2019 da PBS mudaria seu foco setorial e traria um tom ainda mais alarmante sobre o que está acontecendo no “quintal” dos Estados Unidos.

Otaviano Canuto, 68 anos, é membro-sênior do Policy Center for the New South, membro-sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Escreve para o Poder360 mensalmente, com publicação sempre aos sábados.

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