Poder360 26 novembro 2022
Medidas norte-americanas cortam acesso dos chineses a modos de produção e potencial mercado de exportação da tecnologia
A economia está cada vez mais pendurada em nanômetros, em bilionésimos de 1 metro. Essa é medida da largura entre transistores individuais em um chip. Quanto menor essa largura, mais transistores –blocos básicos de construção que conduzem sinais elétricos e energia– podem ser espremidos em um único chip de silício, tornando o chip mais poderoso.
E tudo depende cada vez mais de tais chips, que são os semicondutores menores e mais rápidos necessários para computadores, smartphones, eletrodomésticos, jogos eletrônicos, equipamentos médicos, telecomunicações…
A 1ª geração de produtos eletrônicos nos anos 1970 tinha um chip por aparelho. Agora, um carro elétrico precisa de mais de 2.000 semicondutores, mais que o dobro do número médio de chips dos atuais carros movidos a gasolina. Chips também cumprem papel-chave na tecnologia de última geração, desde a internet 5G até serviços em nuvem e inteligência artificial.
Tais minúsculos semicondutores estão no centro da atual rivalidade entre Estados Unidos e China. Ao final de 2019, observamos em artigo publicado neste mesmo espaço como, do confronto EUA-China disparado por presidente Trump, o capítulo tecnológico iria perdurar (1). Com efeito, além do presidente Biden não ter revertido as medidas comerciais de seu antecessor, novas regras de Washington bloqueiam o acesso da China a chips e proíbem a venda de equipamentos necessários para produzi-los, além de tornarem indisponíveis certas tecnologias essenciais para a produção de chips avançados. As regras vigentes a esse respeito são as mais restritivas até hoje.
Dado o caráter crítico assumido por semicondutores em tanto do que se faz hoje em dia, suas versões avançadas e suas manufaturas se tornaram uma espécie de substituto para armas e exércitos usados nas “guerras por procuração” durante a guerra fria entre EUA e União Soviética. Dificultar a progressão da China na sofisticação da produção de semicondutores tornou-se peça central da política dos EUA em relação ao país. Não deixou de ser notável também como o pacote fiscal de Biden dedicado a semicondutores facilmente recebeu suporte bipartidário nos EUA.
A disputa diz respeito aos segmentos mais avançados na indústria de semicondutores. June Yoon, em artigo publicado no Financial Times, distingue entre semicondutores mais avançados com 3-14 nanômetros de tamanho e os chips mais simples e baratos acima de 14 nanômetros.
Taiwan e Coreia do Sul são únicos no domínio da tecnologia de fabricação dos chips de ponta e ocupam perto de 50% do mercado mundial de semicondutores [veja Anexo]. Os EUA respondem por 12% do mercado global, mas suas empresas locais não produzem chips avançados em grande escala. Por outro lado, muitos estágios do processo de produção de semicondutores dependem de tecnologias originárias nos EUA, inclusive os equipamentos necessários para a produção dos chips mais avançados.
No passado recente, a China ocupou larga parcela dos mercados de semicondutores baratos, com nanômetros mais altos. Pode-se ver no caso uma tentativa de repetição da trajetória na qual o país se utilizou bem da globalização para ascender nas escalas de valor adicionado (2) –e consequentemente na escada da renda per capita. A “guerra por procuração” via semicondutores pelos EUA consiste justamente em cortar o acesso a degraus da escada que estão no exterior. A China terá de construí-los ela própria.
O caso dos semicondutores se encaixa como uma luva no que observamos nessa coluna como reversão da globalização (3) nos segmentos de alta tecnologia considerados sensíveis desde um ponto de vista de segurança nacional. Com custos, ainda que considerados justificáveis por autoridades governamentais.
No caso, trata-se de “custos de oportunidade” econômicos, presumindo-se que uma continuidade da trilha chinesa anterior eventualmente traria chips mais baratos para a economia global. A ver quais serão os resultados do ativismo governamental dos EUA quanto à produção doméstica. Enquanto isso, produtores de semicondutores em Taiwan e Coreia do Sul agradecem a maior dificuldade de chegada para os chineses continentais.
- https://www.poder360.com.br/opiniao/capitulo-tecnologico-do-confronto-eua-china-vai-perdurar-diz-otaviano-canuto/
- https://www.poder360.com.br/opiniao/china-retorna-ao-caminho-do-reequilibrio-por-otaviano-canuto/
- https://www.poder360.com.br/opiniao/globalizacao-mais-lenta-mas-resiliente/
Otaviano Canuto, 66 anos, é membro-sênior do Policy Center for the New South, membro-sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Escreve para o Poder360 mensalmente, com publicação sempre aos sábados.