AGÊNCIA ESTADO – BROADCAST 23/08/2019 15:23:49 – TOP NEWS
ENTREVISTA/OTAVIANO CANUTO: HÁ VISÍVEL RECOMPOSIÇÃO DE PORTFÓLIOS EM ESCALA GLOBAL
Por Simone Cavalcanti
São Paulo, 23/08/2019 – O diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington e sênior fellow não-residente do Brookings Institute, Otaviano Canuto, afirma que há uma visível recomposição de portfólios em escala global, conforme manifesto pela saída de capital estrangeiro na Bolsa brasileira, assim como pelas empresas locais que têm buscado trocar dívida em dólar por financiamento doméstico. “Não há opção para o Brasil a não ser continuar a agenda de reformas. A esperança de retomada do crescimento do PIB repousa em perseverar com essa agenda.”
Segundo ele, o efeito da turbulência argentina na semana passada foi muito mais um contágio de caixa, com fundos necessitando liquidar ativos no Brasil para cobrir e pagar perdas com a Argentina, que outro tipo de contágio.
Para Canuto, que também foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial e do FMI, há claras dificuldades de singularizar um gatilho para a eclosão de uma nova crise financeira mundial, diferentemente de outras experiências, como de economias emergentes nos anos 19990 e a bolha “.com” no início dos anos 2000, uma vez que atualmente, existem muitos “candidatos”.
Ele diz ainda que a acusação do presidente dos EUA, Donald Trump, sobre a manipulação cambial da China tem mais efeitos de retórica e justificativa para movimentos comerciais adicionais do que implicações concretas. A seguir, a íntegra da entrevista:
Broadcast – Como o senhor está vendo esse quadro de economia mundial desacelerando, juros em queda e nações desenvolvidas ainda com dificuldades fiscais?
Otaviano Canuto – A economia mundial está desacelerando, a julgar pelos sinais de crescimento chinês abaixo do que se esperava, números do PIB na Alemanha e no Reino Unido e menor expansão na margem nos EUA durante o segundo trimestre. Chama a atenção o declínio nos investimentos nos EUA, especialmente na indústria, refletindo em grande medida as incertezas criadas pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China. Aliás, também é o caso da Alemanha e da Europa em geral, paradoxalmente mais vulneráveis à desaceleração do comércio mundial que o próprio originador da guerra, os EUA. Juros em queda, tanto nas taxas básicas estabelecidas por bancos centrais quanto em prazos mais longos – incluindo momentos em que juros entre dois e dez anos nos EUA ficaram abaixo das taxas de curto prazo – refletem tanto respostas à desaceleração quanto a busca de refúgio em ativos de menor risco por agentes privados, diante das incertezas e da percepção de quedas adicionais dos juros. Os EUA e a Alemanha poderiam recorrer a políticas fiscais expansionistas sem se defrontarem com reticência de compradores de seus títulos de dívida pública. Essa possibilidade crescerá em atenção até por se considerar que a política monetária deverá ser menos capaz de contrapor-se a desacelerações do que tem sido o caso desde 2008.
Broadcast – Há muitos anos os juros na Europa estão negativos. Quais os riscos estão embutidos com a continuidade desse processo?
Canuto – Os juros negativos na Europa espelham o desejo de compradores de títulos de pagarem um prêmio pela segurança dos papéis públicos correspondentes. Nesse sentido, são mais reflexo que causa de algo, com tesouros nacionais e bancos centrais se acomodando. A continuidade desse processo tenderia a ser ruim para bancos e por refletir a continuidade da falta de apetite por ativos de maior risco, o que não seria bom para investimentos e crescimento econômico em geral. Convém realçar como a percepção de “limpeza” pós-crises de balanços patrimoniais na Europa nunca chegou ao nível do caso dos EUA, havendo ainda preocupação com empresas ‘zombies‘ e casos de dívida pública – como a italiana – que sobrevivem apenas com rolagem de dívidas a baixas taxas de juros.
Broadcast – O ajuste de meio de ciclo que o Fed cita na ata e que foi falado pelo seu presidente, Jerome Powell, após a decisão de política monetária ainda se justifica dados os últimos acontecimentos?
Canuto – A maioria dos membros considerou a redução de 0,25 pontos como uma “recalibragem” da política monetária, um ajuste de meio de ciclo. Mas houve quem apoiasse uma redução de 0,50% e quem votasse pela manutenção da taxa onde estava. O mercado está esperando quedas adicionais nas próximas reuniões.
Broadcast – Quais os gatilhos para o mundo ver eclodir uma nova crise financeira?
Canuto – Enquanto possíveis gatilhos para crises financeiras poderiam em tese ter sido detectados em outras experiências – como economias emergentes nos anos 90, a bolha “.com” no início dos anos 2000, as hipotecas e a pirâmide de ativos subjacente em 2007-08 – desta vez, há claras dificuldades de singularizar algo. A dívida de empresas não-financeiras dos EUA seria um candidato para tal, por ter ocorrido uma volumosa emissão de seus papéis nos anos recentes com níveis de ratings acima da linha de grau de investimento, mas próximos do grau especulativo. Alguma deterioração de condições financeiras, inclusive elevação de juros, poderia significar forte choque. Há, porém atenuantes desse risco, já que em parte essa dívida serviu para reaquisição de ações, assim como muitas empresas têm mantido níveis de liquidez elevada em seus balanços patrimoniais ao invés de investir em ativos reais. O endividamento que esteve subjacente à suavização da desaceleração de crescimento na China também aparece como candidato, mas há espaço – inclusive fiscal – para políticas públicas evitarem um colapso. Algumas economias emergentes também estão em posição vulnerável, por conta de endividamento em dólar de empresas não-financeiras e/ou setores públicos – como Argentina e Turquia – mas é difícil se afirmar que teriam efeito sistêmico global. O cenário mais provável parece ser um de vários pequenos choques, com efeitos de desaceleração no crescimento porque a retração no endividamento se daria mediante cortes de investimentos e empregos, sem necessariamente se ter algo sistêmico como foi o caso em 2007-08.
Broadcast – Muito tem se falado em uma possível ‘japanização’, ou seja, crescimento e inflação baixos por muitos anos. O mundo caminha para isso?
Canuto – De fato, apesar de políticas monetárias tão frouxas quanto tem sido o caso desde a crise financeira global, o crescimento econômico médio tem sido menor que nas décadas prévias. A economia dos EUA vem apresentando um longo período de trimestres sem queda no PIB mas a média de crescimento é inferior às de décadas anteriores. As taxas longas de juros vêm declinando sistematicamente no mundo avançado. A inflação não parece responder com alta mesmo em casos de baixo desemprego, como nos EUA. Parece haver “algo de podre no Reino da Dinamarca”, mas hipóteses abundam: envelhecimento populacional, concentração de renda enfraquecendo demanda agregada, choques negativos sobre a inflação enquanto durou a rápida transformação estrutural na Ásia, menor escopo para ganhos de produtividade com as inovações tecnológicas do momento etc. Algo pode ser dito: em vários casos nacionais, o manejo contracíclico de política fiscal parece ter estado aquém do possível.
Broadcast – O que está se pensando de novo sobre a eficácia da política monetária?
Canuto – A eficácia no momento é menor que nos anos posteriores à crise financeira global, até porque os balanços de bancos centrais já foram dilatados e os juros reduzidos ao limite, ou quase isso. A primeira leva de reações por bancos centrais pós-crise financeira global foi para evitar liquidações generalizadas de ativos e processos autodestrutivos de valor como nos anos 1930. Depois, viraram também fonte de estímulos. Mas não se pode empurrar uma corda e, caso agentes privados não queiram assumir riscos, alavancar patrimônios e adquirir ativos reais de risco, mais política monetária não vai gerar resultados iguais.
Broadcast – Os principais bancos centrais estão comprando ouro para suas reservas. Que desconfiança está embutida nisso?
Canuto – A expansão da demanda por ouro é um dos efeitos do acirramento de incertezas quanto a políticas públicas, inclusive a possibilidade de extensão da guerra comercial para taxas de câmbio. Há uma contradição entre os desejos expressos pelo presidente Trump e os efeitos de suas políticas. O déficit comercial norte-americano não vai cair com sua política comercial, por refletir acima de tudo o descompasso entre o nível doméstico de demanda e a capacidade local de produção. As importações da China nos EUA têm sido substituídas por outras mais caras de outros países, além do efeito negativo da guerra sobre as próprias exportações do país. Além disso, quanto maior a insegurança global, maior a compra de títulos de dívida pública dos EUA e maior a pressão de valorização do dólar. Em ambientes como esse, a diversificação de portfólios financeiros acaba se estendendo ao ouro.
Broadcast – A China deu ultimamente, ao desvalorizar sua moeda, mostra de seu poder no contexto das negociações comerciais com os EUA. Quais as chances de a temperatura subir cada vez mais?
Canuto – Tudo vai depender dos próximos movimentos na política comercial dos EUA. Cumpre observar que a China enfrenta riscos de fuga de capital, apesar de controles. O episódio de desvalorização que ocorreu recentemente foi na verdade o resultado de uma cruzada de braços pelas autoridades monetárias chinesas. É paradoxal que a acusação de manipulação cambial da China pelo Tesouro dos EUA se deu quando a China estava deixando o mercado operar sem intervenções cambiais. A acusação de manipulação cambial tem mais efeitos de retórica e justificativa para movimentos comerciais adicionais do que implicações concretas.
Broadcast – Haverá tempo para a retomada devida do crescimento do PIB brasileiro antes que as coisas piorem no exterior?
Canuto – Não há opção para o Brasil a não ser continuar a agenda de reformas. Os resultados desta em termos de maiores recursos de fora poderão ser menores do que seriam com um cenário externo mais favorável, mas a alternativa de não continuar seria ainda pior. Há uma visível recomposição de portfólios em escala global, conforme manifesto pela saída de capital estrangeiro na Bolsa, assim como pelas empresas brasileiras que têm buscado trocar dívida em dólar por financiamento doméstico. Contudo, mesmo com o declínio nos fluxos de investimento direto externo, estes ainda superam o déficit corrente brasileiro e o balanço de pagamentos permanece sólido, além do patamar de reservas. A esperança de retomada do crescimento do PIB repousa em perseverar com a agenda.
Broadcast – A crise política da Argentina afetou diretamente os mercados financeiros no Brasil. O investidor estrangeiro ainda não diferencia um emergente de outro?
Canuto – Diferencia sim. O efeito da turbulência argentina na semana passada foi muito mais um contágio de caixa, com fundos necessitando liquidar ativos no Brasil para cobrir e pagar perdas com a Argentina, que outro tipo de contágio, como alguma reavaliação de ativos brasileiros. Isso não elimina os outros efeitos de recomposição de portfólios que descrevemos, associados a busca de seguro em papéis de baixo risco, como títulos de dívida pública dos EUA. Também não elimina a possibilidade de reavaliação de ativos brasileiros que dependem do desempenho macroeconômico argentino em vias de piorar. Mas as tendências de cunho geral, por blocos de países ou não, ocorrem com alguma diferenciação entre emergentes. Aliás, é até possível que, com a continuidade de reformas, o Brasil tenha uma parcela crescente no bolo decrescente de recursos destinados ao conjunto de emergentes.
Contato: simone.cavalcanti@estadao.com