Em busca de sentido para o tuíte de Trump sobre Brasil e Argentina, escreve Canuto

 

Poder 360, 5 dezembro 2019

Começamos a semana com o presidente Trump acusando, via Twitter, Brasil e Argentina de manipulação cambial e concorrência desleal com agricultores de seu país. Como reação, reestabeleceria as tarifas plenas sobre aço e alumínio exportados dos dois países para o mercado dos EUA.

Até o momento em que escrevemos, nada de concreto havia sido ainda emitido pelos órgãos responsáveis e, no caso, detalhes importam e muito para avaliar potenciais impactos. Contudo, o evento é significativo o suficiente para se tentar entender o que pretende o emissor do Twitter.

Lembremo-nos de que, em maio do ano passado, Argentina e Brasil conseguiram mitigar o impacto específico em seus casos das medidas que o presidente Trump estabeleceu sobre importações de aço e alumínio. A Argentina anunciou que aplicaria um teto voluntário sobre suas exportações daqueles produtos para os EUA, a rigor em patamares compatíveis com os volumes de anos anteriores, em troca de escapar de novas tarifas. O Brasil, por sua vez, aceitou cotas para suas vendas de aço também como contrapartida de não sofrer tarifa adicional de 25%, ao passo que optou por encaixar a sobretaxa de 10% no alumínio.

Aparentemente seriam esses arranjos que Trump estaria anunciando a intenção de suspender. Por quê? Para que? Tentemos debulhar o tuíte…

Antes de tudo, a acusação de manipulação de taxas de câmbio não faz sentido. A propósito, o tesouro norte-americano vem seguindo há muitos anos três critérios para classificar outro país como manipulador de taxas de câmbio: além de ser parceiro comercial significativo dos EUA, o país tem que simultaneamente estar obtendo saldos comerciais bilaterais significativos, exibir superávits totais em conta corrente, além de fazer intervenções cambiais unidirecionais para manter sua moeda desvalorizada. Não que o presidente Trump siga tais critérios, já que a China foi recentemente acusada de manipuladora cambial embora, ao contrário de alguns anos passados, a China esteja hoje longe de se encaixar simultaneamente nos três critérios.

Mas o contraste com as experiências recentes de Brasil e Argentina é gritante. Esta viu-se obrigada a estabelecer fortes restrições à saída de capital para evitar erosão de reservas e desvalorizações cambiais catastróficas. No Brasil, as intervenções pelo Banco Central a título de reduzir volatilidade têm sido unilaterais na direção de… conter a desvalorização cambial.

É verdade que a fortalecimento do dólar em relação às demais moedas enfurece Trump. Aproveitou o tuíte de segunda-feira para mandar mais uma mensagem ao Federal Reserve para que este continue afrouxando sua política monetária. Paradoxalmente, quanto mais tuítes ameaçadores e decisões como a que anunciou, maior o nível da incerteza que esse ano já afetou negativamente os investimentos e o crescimento econômico global, maior a busca de refúgio em títulos em dólar e… maior o fortalecimento dessa moeda!

E quanto ao efeito da suspensão dos acordos para a indústria doméstica de aço e alumínio nos EUA? Cumpre lembrar que, no ano passado, a própria se posicionou a favor do arranjo então estabelecido, pois afinal se beneficia da importação de semiacabados de aço do Brasil.

A rigor, conforme mostrado em longo artigo do Financial Times domingo passado, a batalha de Trump para reviver o “cinturão de ferrugem” (rust-belt) dos EUA através de protecionismo vem coletando seguidos fracassos. O baixo desempenho dos investimentos manufatureiros no país este ano, em parte explicado pela incerteza gerada pela guerra comercial disparada pelo governo norte-americano, tem tido efeitos negativos que obscurecem eventuais aumentos de produção e emprego locais nos segmentos supostamente beneficiários da proteção. A performance da economia e do emprego no país vem sendo apoiada por outros fatores apesar do protecionismo.

Provavelmente presidente Trump continua convencido quanto a ganhos via elevação de tarifas industriais. E quanto à referência aos fazendeiros? Trump pode ter em mente os aumentos de vendas de soja e outros produtos agrícolas por Brasil e Argentina para a China via “desvio de comércio” criado pela retaliação chinesa contra exportações agrícolas dos EUA. Como já o fez em outros momentos – como na vinculação com assuntos migratórios no caso do México em junho – pode ser que esteja pensando em associar eventual reversão do anúncio via Twitter com algo nessa área para mostrar aos fazendeiros de seu país. Aumentos na quota de etanol norte-americano no mercado brasileiro? Que mais da agenda de interesses do governo Trump que não já tenha sido graciosamente concedido pelo governo Bolsonaro?

Finalmente, resta a hipótese de busca de reforço da “narrativa política doméstica” que lhe deu vitória eleitoral. Mas, no caso, o pessoal do aço tende a não gostar, a julgar pelo ano passado. Mais etanol no Brasil dificilmente aplacaria a insatisfação de fazendeiros com as consequências para eles da guerra comercial com a China.

Vale lembrar a opinião emitida pelo Tribunal de Comércio Internacional dos EUA no mês passado, segundo a qual Trump teria violado o uso da seção 232 da lei de 1962 que lhe dá a prerrogativa de tomar medidas comerciais em casos de ameaça à segurança nacional, ao ignorar um prazo mínimo de 90 dias para impor ou alterar tarifas quando decidiu dobrar tarifas sobre o aço importado da Turquia em agosto do ano passado. Contestação similar foi feita com relação à ameaça de impor tarifas sobre automóveis da União Europeia. Trata-se do primeiro episódio de contestação legal por tribunal doméstico da maneira como Trump vem usando aquela prerrogativa legal.

A nosso juízo, enquanto esclarecimentos e formalização não vêm, tendo a concordar com um ex-colega no Conselho de Diretores Executivos do FMI, o argentino Hector Torres, que em comentário segunda-feira no LinkedIn observou: “o Presidente Trump acredita que governos de Brasil e Argentina estão fabricando desvalorizações cambiais para causar danos a fazendeiros dos EUA… e responde aumentando tarifas sobre importações de aço e alumínio… a premissa está errada e a reação tola!”. Não sem antes contribuir para a incerteza que, como observamos, já vem impactando negativamente a economia global.

Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp

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