Desde que assumiu a presidência, em maio de 2016, Michel Temer (PMDB) tenta aprovar algum tipo de reforma da Previdência capaz de conter gastos públicos com pensões e aposentadorias. Em 18 meses, a proposta foi alterada e reconfigurada muitas vezes e hoje, de um plano original mais ousado, é provável que poucas novidades acabem implementadas – entre elas a necessidade de idade mínima para se aposentar.
Porém, ainda que o governo conseguisse aprovar sua reforma “ideal”, essa não seria a última que o Brasil teria de discutir no médio prazo, diz Otaviano Canuto, diretor-executivo do Banco Mundial para o Brasil, Colômbia, Equador, Filipinas, Haiti, Panamá, República Dominicana, Suriname e Trinidad e Tobago.
Isso porque o ritmo acelerado de envelhecimento da população vai criar uma necessidade permanente de revisão dos sistemas de aposentadoria em praticamente todo o mundo.
Em entrevista à BBC Brasil, o economista comenta as propostas para a Previdência contidas no relatório “Um Ajuste Justo”, encomendado ao banco na gestão da presidente Dilma Rousseff e divulgado no fim de novembro.
Entre elas, há sugestões polêmicas como a possibilidade de tarifar funcionários públicos que, por terem sido contratados antes de 2003, podem se aposentar ganhando o salário integral. “Não adianta ser (direito) adquirido se não for viável”, diz ele.
A seguir, os principais trechos da entrevista à BBC Brasil.
BBC Brasil – Um ajuste mais suave da previdência, como o que tramita hoje no Congresso, aumenta a urgência de uma nova reforma já no próximo governo?
Otaviano Canuto – Quanto mais nós desidratarmos o esforço de ajuste feito hoje, maior será, em termos relativos, o esforço no futuro.
Nós temos hoje que fazer a reforma que estamos fazendo porque a que foi feita em 2003 (que alterou regras no regime dos servidores) ficou no meio do caminho.
A gente tem um processo de envelhecimento da população que é rápido. Temos também um fato inegável: para alguns grupos, a previdência é muito mais generosa do que para seus equivalentes em outros países.
A previdência é generosa quer seja na idade com que as pessoas podem optar por se aposentar, a despeito do aumento de esperança de vida, quer seja na taxa de reposição, que é o rendimento após a aposentadoria.
A gente vai ter que mudar essa trajetória porque, do contrário, não vai ter recurso público para fazer as atividades essenciais.
BBC Brasil – Como o senhor enxerga as avaliações de que o rombo na Previdência é menor do que mostram os números do governo e de que a reforma não seria necessária neste momento?
Independentemente da fotografia contábil no curto prazo, a dinâmica populacional aponta para proporções crescentes de cidadãos inativos (economicamente) em relação a ativos. O filme é de insustentabilidade. Não haver reforma agora vai apenas exigir reformas ainda mais duras adiante.
BBC Brasil – Uma das sugestões do relatório do Banco Mundial é tarifar a aposentadoria de servidores públicos contratados antes de 2003, que podem receber aposentadoria integral. É viável discutir mudanças em direitos adquiridos?
Canuto – Veja, o relatório é um tipo de instrumento que existe desde sempre, no Fundo Monetário (Internacional) e no Banco Mundial, que se chama ‘revisão de gasto público’. Ele não é feito por iniciativa das instituições. O governo pede e o banco tem esse instrumento para coletar estudos e análises que existem e acrescentar algumas (avaliações) que pode fazer para dar um mapa.
Mas é evidente que as opções de política a serem adotadas são dos governos. O Banco Mundial não é governo e não está capacitado para isso. Quem está habilitado e democraticamente designado para isso são os governos dos países. São eles que vão fazer os trade-offs, as escolhas.
A tarefa do relatório é, antes de tudo, mostrar: ‘Olha, esse quadro não é sustentável e, pelo que nós pudemos localizar, existem algumas maneiras pelas quais fazer o ajuste minimizando o efeito sobre os mais pobres’.
É difícil ter uma possibilidade não-polêmica em um relatório que vai tratar um problema desses, em que justamente alguém vai ter que ter benefícios…
BBC Brasil – Em que alguém vai sair perdendo?
Canuto – Vai ter que sair perdendo. Como bem disse o ministro (da Fazenda Henrique) Meirelles, pelo menos tem um ganho enorme (na reforma), que é: mesmo aqueles que estão perdendo agora sabem que o que têm é viável, porque senão o risco é dos direitos adquiridos hoje serem de papel. Não adianta ser adquirido se não for viável.
BBC Brasil – Com que tipo de problema os governadores eleitos em 2018 terão de lidar?
Canuto – Em escalas diferenciadas nos Estados, nós vemos a mesma dinâmica explosiva federal. Se nós temos um teto de gastos no governo federal propondo um ajuste gradual de 0,6% do PIB ano após ano, e essa camisa de força vai exigir reforma da Previdência, inevitavelmente algo vai acontecer também na mesma linha nos Estados (com os servidores estaduais).
Os Estados estão em situação diferenciada porque essa dinâmica do envelhecimento da população está em momentos diferentes, não por acaso a gente vê as dificuldades de Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro.
Agora uma coisa comum a todos eles vai ser a necessidade de ajustar a trajetória explosiva que está emanando de privilégios e da dinâmica de envelhecimento populacional.
Nós estamos condenados a ter periódicas reformas da Previdência. Aliás, não é só no Brasil. O mundo inteiro está se defrontando com as dificuldades de ajuste em relação a essa dinâmica populacional. Quanto mais postergarmos o momento, maior será o tamanho da reforma necessária no momento seguinte.
BBC Brasil – A redução do valor das aposentadorias foi um dos pontos da reforma que mais gerou reações contrárias. Ainda assim, o Banco Mundial avalia no relatório que a mudança que o Brasil discute é branda…
Canuto – Eu creio que é perfeitamente natural que, numa democracia, os diversos grupos sociais se manifestem. É natural que eles busquem preservar sua parte. Mas é também natural que, de um jeito ou de outro, a conta feche. O que tá em curso aqui é a discussão, dentro de marcos democráticos, de quais parcelas (da população) vão ter que se ajustar mais.
E levando em conta que a gente tem – desde o meu ponto de vista pessoal – uma obrigação por preservar a parcela de baixo da pirâmide desse ajuste, por sermos um país que tanto descaso tivemos com nossos pobres ao longo de séculos.
BBC Brasil – Uma das propostas do relatório é desvincular do reajuste do salário mínimo o valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o piso do INSS. Não há risco de que a medida aumente pobreza e desigualdade?
Acho que tem que ser visto dentro do seguinte ângulo – e o Banco Mundial e muita gente bateu nessa tecla: o Brasil não faz avaliação das políticas públicas. A gente vai criando políticas e elas viram intocáveis.
Um caso raro em que isso ocorreu – a avaliação – foi o do Bolsa Família. Já aquele programa para o pescador artesanal (seguro-defeso, para momentos em que os peixes estão se reproduzindo e a pesca está proibida), eu lembro que em determinado momento se descobriu que tinha mais de mil pescadores artesanais lá em Brasília. Pescadores de almas, talvez (risos).
Nunca foi feita avaliação de custo-benefício. O mesmo se aplica a todos os outros. O que o Banco sugere é que se faça avaliação de resultado e, eventualmente, que se coloquem esses programas juntos com outros da mesma natureza.
O Bolsa Família poderia ser – e poderá ser – uma porta de entrada para uma coisa que nós no banco chamamos de ‘conhecer o pobre pelo nome’. Na medida em que você faz essa construção de dados das pessoas, por localidade, você pode, com o passar do tempo, fazer políticas endereçadas às necessidades daquele receptor.
Se nós conhecermos melhor nossos pobres pelo nome – ou seja, por onde estão, por suas necessidades particulares -, mais fácil vai se tornar ajudá-los a sair dessa situação de miséria.
Ao indexar tudo ao salário mínimo, criou-se uma distorção. Você não pode mais aumentar o salário mínimo real, porque quando você aumenta, gera, via cascata, uma explosão de outros gastos que não têm nada a ver com o que justifica o salário mínimo – que, aliás, é o que aconteceu.
BBC Brasil – O estudo elenca uma série de sugestões para restaurar o equilíbrio fiscal do país, entre elas a cobrança pelo ensino superior público. O que o senhor achou da polêmica em torno dessa proposta?
Canuto – De certa maneira, eu não posso mentir que me surpreendeu o fato de tanta gente competente que eu conheço só focar nesse tema. Segunda observação é a seguinte, a possibilidade, a proposta de eventualmente se cobrar anuidade de universidade pública, que hoje é gratuita, ela é parte de um elenco que responde uma questão que é inegável: nós temos um sistema perverso. Um sistema no qual a escola fundamental pública média tem uma qualidade inferior à escola privada.
A mesma classe média que coloca os filhos na escola privada paga, tem nesses filhos levam vantagem para acessar o ensino público gratuito superior. O ensino público gratuito, o acesso às universidades públicas de qualidade é apenas um capítulo de um processo que na sua base tende já a gerar desigualdades.
Então, de repente, por que não pensar em cobrar uma contribuição desses que podem, mais abastados? A magnitude disso certamente não vai ser nada grande o suficiente para financiar a universidade pública – nem ninguém está dizendo no relatório. Eu desafio alguém a encontrar no relatório alguma coisa contra a universidade pública ou propondo a extinção da pesquisa como já ouvi na boca de alguns.
É apenas: ‘será que não existe como possibilidade, em uma magnitude menor, pegar esse dinheiro e, com ele, montar bolsas que ajudem aqueles que não são privilegiados?’ Por mais que a população dos estudantes das escolas públicas hoje tenha mudado em relação ao passado, por conta das ações afirmativas e de outros fatores, mas ainda a predominância é daqueles que foram educados em escolas privadas, com uma vantagem em relação a os outros. Apenas isso.
Idealmente, o que a gente precisa ter é escola pública de qualidade, e aí é impressionante como ninguém observa uma coisa que já era conhecida, que está no relatório, que é esse descompasso enorme entre gasto público e resultado.
BBC Brasil – Recentemente, o senhor esteve presente em eventos de um movimento chamado Brasil 21. É um sinal de que pretende participar do debate econômico nas eleições de 2018?
Canuto – Olha, eu gostei muito da proposta desses jovens. Pediram para conversar comigo sempre que quisessem sobre economia e eu tive o maior prazer. Eu não tenho nenhuma… inclusive por conta da minha filiação institucional, não me cabe ficar me envolvendo mais com esses jovens, mas evidentemente estou disposto a conversar com eles ou com outros, dando a minha contribuição como analista econômico, se considerarem válida.